O corpo
por Foucault
O excerto abaixo é baseado
no livro Vigiar e Punir de Michel Foucault. Esse texto traz uma das ideias
centrais do pensamento de Foucault a qual diz respeito à invenção do sujeito
moderno, do indivíduo moderno:
“(...) Durante a era moderna, o
corpo se tornou alvo de dois tipos de pesquisas e escritas. Uma forma anatômica
e metafísica, dos filósofos e dos médicos, e uma forma técnica e política, que
estava presente nos regulamentos de instituições e de formas de condutas
disciplinadoras, como, por exemplo, no exército, no hospital e na família.
Para a forma de escrita sobre o
corpo anátomo-metafísica dizia e se investigava as funções do corpo, cada
órgão, cada detalhe, e se procurava entendê-lo em um conjunto moral - todas as
questões orbitavam as funções. Por exemplo: olho, o que é? Para que serve? Como
funciona? Qual a sua função biológica e moral?
Para a forma de escrita sobre o
corpo técnica-política o que se dizia apontava como torná-lo apto para um ideal
de vida social. Por isso, estas técnicas informavam como fazer com que uma
pessoa fosse capaz de produzir algo, como por exemplo, como um trabalhador pode
conseguir mais de seu trabalho e em menos tempo, como acalmar uma pessoa
considerada louca, como impedir que as crianças utilizassem indevidamente os
órgãos genitais, como impedir que os soldados ficassem "molengas", e
muitos outros.
Estes conhecimentos sobre o
corpo faziam com que cada vez mais as pessoas procurassem viver de forma a
corresponder a eles. Assim, logo se descobriu que o que se faz com o corpo, se
faz com a subjetividade das pessoas. Se alguém é treinado para ser soldado,
logo ele pensará com os ideais de um soldado, terá emoções de soldado, ou seja,
estará moldado por dentro e por fora para ser um soldado. O que se diria então
dos esportistas, dos religiosos, dos alunos, dos trabalhadores? A modernidade a
partir do corpo aprendeu a moldar as pessoas por completo, não apenas por
teoria, mas sobretudo, por meio de técnicas. (...)”
Para este filósofo, a maneira
como nos vemos não procede de nossa natureza, nem de uma essência pessoal; ela
vem de fora, de práticas que criam sujeitos - a sujeição. Nós nos constituímos
não apenas por palavras, mas por ações fundidas a palavras, que, de modo geral,
vêm ditadas pela sociedade, ou melhor pelas instituições.
Para Foucault, nós não somos fruto de teorias,
somos fruto de práticas, ainda que algumas teorias nos influenciem. Por
exemplo, seria possível existir um dançarino que nunca dançou ou um pintor que
nada pinta? A resposta seria que são nossas práticas que nos constituem, e não
a natureza.
Mas de quais práticas estaria
falando o filósofo? De onde elas vieram? Foucault fala das práticas
disciplinares que vieram das instituições modernas, principalmente a partir do
século XVIII, como as prisões, os hospitais, os quartéis, as fábricas e as
escolas; sim, as escolas etc.
A primeira atividade que as
autoridades modernas deram ao corpo para discipliná-lo foi a distribuição. Para
controlar um individuo, é importante colocá-lo em um lugar escolhido por nós.
Mas como seria possível distribuir pessoas de uma cidade ou de uma sociedade
inteira?
Primeiro, construindo cercas ou muros, como nos
quartéis e nas escolas. Dessa ma¬neira, os soldados e os alunos ficam
separa¬dos das pessoas, não causando problemas.
A segunda prática de distribuição
consiste em separar os grupos e fazer com que cada um encontre um lugar no
espaço. Por exemplo, cada trabalhador no seu setor, cada doente no seu quarto,
cada aluno em sua carteira etc.
A terceira prática de
distribuição configura-se em dar aos indivíduos um lugar funcional: não basta
separar, é preciso que estejam em um lugar em que possam ser vigiados, evitando
comunicações indevidas ou reunindo forças contra quem os controla.
Enfim, toda a separação tem o
ideal da fila, o que quer dizer que as pessoas são separadas segundo uma
hierarquia. Por exemplo, as séries e as classes na escola são separadas por
hierarquias de idade, rendimento do aluno, e são formadas segundo a atenção
dada à disciplina.
Outra forma de transformar os
indivíduos por meio dos corpos consiste em controlar o seu tempo.
Primeiro, pelos horários: hora
para chegar,
descansar,
sair, trabalhar, dormir, acordar, tomar o remédio.
Segundo, marcando o tempo de sua
ação; por exemplo, a marcha dos soldados, a velocidade para apertar um parafuso
na fábrica, em atender um telefone ou outra atividade.
Terceiro, disciplinar o corpo
inteiro, para sempre fazer bem-feito tudo.
Quarto, adaptar o corpo aos
objetos que se manipulam; por exemplo, caso fosse preciso ficar muito tempo em
pé, seria necessário disciplinar as pernas e controlar os gestos, para que elas
consigam executar as tarefas.
Enfim, utilizar bem o tempo, até
a exaustão.
Para conseguir criar o indivíduo
desejado, também foi preciso controlar a forma de sua subordinação à
disciplina. Para isso:
Separaram-se os aprendizes dos
veteranos. Segundo as necessidades de exercícios, foram separados aqueles que
precisavam melhorar o desempenho nesta ou naquela ação ou atividade,
exercitando-os até que alcançassem o máximo rendimento. Como em uma academia de
musculação, aquele que precisa trabalhar os braços, por exemplo, foi
direcionado a isso, assim como no exército, em que aquele que precisa melhorar
a pontaria é separado e exercitado para isso.
Criaram-se testes para medir a
habilidade de cada indivíduo e encerrar o processo.
Para cada um é dada uma série de
atividades, conforme sua idade, conhecimento e habilidade, até alcançar o
objetivo final.
- Recursos de um bom adestramento
Para conseguir um bom
adestramento, foi preciso lançar mão de alguns recursos e procedimentos:
Vigilância - é preciso que
alguém fique observando a atividade, o corpo, o uso do tempo. Dessa maneira,
será possível corrigir ou punir.
A sanção normalizadora - em cada
instituição, há maneiras de punir as pessoas que não cumprem seus deveres, o
que ocorre na família, na escola, na fábrica ou no exército. Essa punição pode
vir dos próprios integrantes da instituição (os familiares, por exemplo) ou das
autoridades.
O exame - ao saberem que vão ser
submetidos a um teste, prova ou observação de uma autoridade, os indivíduos se
autovigiam e se autopunem, colocando os objetivos das instituições dentro de
si. Como? Vejamos o exemplo das provas na escola. Para se sair bem na prova de
Matemática, o aluno terá de estudar. Estudar é uma atividade nem sempre
agradável. Para realizar essa atividade nem sempre agradável, o aluno terá de
se vigiar, dizendo a si mesmo: será que estou estudando o suficiente? Caso não
esteja estudando, ele pode submeter-se a uma autopunição, por exemplo, já que
não estudou durante a tarde, não assistirá ao filme da noite para poder
fazê-lo.
Os exames escolares produzem uma
documentação que, ao final, compõe um histórico de cada pessoa. Por exemplo,
tanto na escola como no hospital ou na fábrica, cada indivíduo tem uma ficha
onde são registrados seus dados e guardados a documentação. Dessa maneira, é
possível saber quantas vezes o aluno foi reprovado, se é ou não disciplinado,
em quais matérias apresenta maior ou menor dificuldade, se foi punido e as
razões de sua punição etc. Do mesmo modo, na fábrica, quantas vezes o operário
chegou atrasado, quantas faltas já teve, quais suas condições de saúde, quantos
e quais foram os acidentes sofridos etc. Enfim, cada um se torna um caso que
requer determinado tratamento.
Para Foucault, os indivíduos não
nascem prontos, não têm essência ou natureza; eles são criados pelas atividades
que desenvolvem com o seu corpo. Para esse filósofo, somos corpo e nada mais. O
que fazemos com o corpo é o que nos define, e não apenas o que é dito sobre nós
mesmos. E ninguém nasce livre, apesar de essa frase parecer bonita; nossa liberdade
é uma conquista que fazemos não com palavras, mas com práticas.
As ideias/conceitos, a
distribuição, o controle do tempo, o controle das gêneses e recursos de um bom
adestramento, foram melhor trabalhadas na obra de Foucault, Vigiar e punir.
O trabalhador é vigiado pelo
gerente, desde o lugar onde está até o que está fazendo e em quanto tempo.
Conforme o tempo passa, o trabalhador vai assumindo, mesmo sem perceber, ideias
da ação do seu próprio corpo. Até chegar a hora em que vai acabar acreditando
que aquele tipo de vida é ideal. Desse modo, como a fábrica é pensada
racionalmente, o trabalhador vai levar para sua vida pessoal essa
racionalidade, tanto na ordenação do espaço como na ocupação do tempo.
***Texto extraído do
livro Filosofando de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Ed. Moderna.